HUMOR HOSTIL E PRECONCEITO
A notícia de que o TRF-4 confirmou a sentença condenatória ao ex-presidente Jair Bolsonaro, desta vez por crime de “racismo recreativo”, nos leva a refletir sobre o que significa essa prática delituosa. Trata-se da chamada “brincadeira de mau gosto”: o preconceito disfarçado de piada, o humor hostil que, para muitos, é confundido com “liberdade de expressão”. Nesse caso, a comicidade reproduz e perpetua o preconceito racial. O discurso humorístico racista contraria, inclusive, o princípio constitucional da fraternidade como instrumento de proteção da comunidade negra.
Declarações discriminatórias proferidas por pessoas que se julgam superiores, sobretudo quando partem de autoridades, recorrem a velhos artifícios de preconceito racial, cujas implicações políticas retrógradas acabam sendo naturalizadas. São a comprovação do atraso das relações étnico-raciais no Brasil.
O ex-presidente, agora condenado por “racismo recreativo”, foi reiteradamente useiro e vezeiro em produzir “piadas” de cunho discriminatório contra a população negra. Em 2017, quando ainda era deputado federal, durante palestra no Clube Hebraico, no Rio de Janeiro, declarou:
> “Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles.”
Boa parte da plateia riu da “piada”.
Essas manifestações ofensivas à diversidade étnica foram repetidas em várias ocasiões, sempre sustentadas pela confiança na impunidade — a certeza de que jamais seria responsabilizado civil ou penalmente por tais atos.
O recurso de transformar preconceito em piada não é algo novo no Brasil. Ele se ancora em uma tradição que trata a população negra de forma estereotipada e jocosa. A novidade está no fato de que o sistema de justiça brasileiro começa, enfim, a punir de forma mais severa os praticantes desse tipo de crime, independentemente da função pública que ocupem. A decisão do TRF-4, nesse sentido, é também pedagógica.
Os julgadores consideraram racistas as falas dirigidas a um apoiador negro com cabelo Black Power, em frente ao Palácio da Alvorada, no espaço conhecido como “cercadinho”. Na ocasião, Bolsonaro comparou o cabelo do homem a um “criador de baratas e piolhos”, numa associação da estética à sujeira. O tribunal determinou que ele e a União paguem uma indenização de R$ 1 milhão, além da obrigação de produzir uma campanha nacional contra o racismo e de retirar das redes sociais os conteúdos relacionados ao caso.
Piadas e “brincadeiras” praticadas por figuras públicas racistas não podem ser vistas apenas como atitudes individuais: elas funcionam como ferramentas de dominação social. Trata-se de uma estratégia discursiva reacionária, que mobiliza elementos comunicativos para propagar ideologias de exclusão e dominação. Isso só é possível porque se apoia numa história marcada pelo racismo estrutural, herdado do sistema colonial brasileiro, que dependia da exploração da mão de obra escravizada negra.
O racismo é um problema persistente, que precisa ser enfrentado por meio de movimentos sociais, políticas públicas e, sobretudo, pelo fortalecimento da responsabilização jurídica daqueles que se valem de sua autoridade circunstancial para ofender e discriminar comunidades negras. Combater a impunidade é o primeiro passo para transformar a realidade.
Rui Leitão