colunaRui Leitão

A PENA DE MORTE E AS MORTES SEM PENA

A pena de morte foi abolida no Brasil em 1890, com a promulgação do Código Criminal da República. A última execução havia ocorrido em 1876: a vítima foi um escravo, condenado por matar seus senhores, em Alagoas. A Constituição Federal vigente proíbe a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Entretanto, em 5 de setembro de 1969, com a edição do Ato Institucional nº 14 (AI-14), o regime militar autorizou a aplicação da pena de morte e de prisão perpétua a civis considerados perigosos à segurança nacional. O texto justificava a medida afirmando que “atos de guerra psicológica adversa e de guerra revolucionária ou subversiva, que atualmente perturbam a vida do País e o mantém em clima de intranquilidade e agitação, devem merecer mais severa repressão”. Era a forma encontrada pelo governo militar para combater a luta armada. Registros oficiais indicam que apenas uma pessoa foi condenada à morte com base nesse dispositivo.

Em 1971, o militante Theodomiro Romeiro dos Santos, menor de idade, integrante do clandestino Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR), foi preso em Salvador. Acusado de matar o sargento do Exército Waldo Xavier de Lima durante sua transferência para o presídio, foi condenado à morte por fuzilamento, em decisão unânime do Conselho de Justiça da Aeronáutica, na Bahia — tornando-se o primeiro brasileiro a receber tal sentença desde a Proclamação da República.

A divulgação da sentença provocou uma onda de protestos. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Igreja Católica, a Associação Brasileira de Jornais, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promoveram uma intensa campanha contra a pena de morte. Meses depois, a sentença foi comutada para prisão perpétua e, anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal (STF) a reverteu para 13 anos de reclusão.

Theodomiro cumpriu nove anos e fugiu dez dias antes da promulgação da Lei da Anistia. Exilou-se no México e na França, retornando ao Brasil apenas em 1985. Formou-se em Direito e tornou-se juiz do Tribunal Regional do Trabalho, em Pernambuco. Em entrevista ao jornal O Globo, em março de 2011, declarou: “Quando me condenaram, tive a segurança de que não seria executado. Quando queriam matar alguém, matavam. Não julgavam antes. Foi um erro trágico deles.” Nunca pediu indenização pelo tempo em que permaneceu preso, nem pelas torturas que sofreu.

Apesar do AI-14 ter permanecido em vigor por quase dez anos, a pena de morte nunca chegou a ser executada formalmente. No entanto, sabe-se que a repressão a aplicava ilegalmente, sem processo ou julgamento, por meio de execuções sumárias, assassinatos e desaparecimentos — crimes forjados como suicídios, fugas ou acidentes, para evitar o devido processo legal. A Comissão Nacional da Verdade registrou a morte de mais de 430 pessoas e o desaparecimento de outras 210, além de milhares de vítimas de tortura.

A pena de morte, portanto, não desapareceu — apenas mudou de forma. Substituiu o pelotão de fuzilamento pela fome, o cadafalso pela violência policial, a sentença judicial pela exclusão social. É a pena sem julgamento, o castigo sem tribunal, a morte sem pena.

Rui Leitão

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