colunaRui Leitão

A CANÇÃO QUE A DITADURA NAO CONSEGUIU CALAR

“Vem, vamos embora que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” Mais de vinte mil vozes cantavam a música que se tornaria o hino da resistência contra a ditadura militar e, depois, de qualquer manifestação pública de protesto no Brasil.

Na noite de 29 de setembro de 1968, no Maracanãzinho, realizava-se a final da fase nacional do III Festival Internacional da Canção. O público reagiu vaiando a música vencedora, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, em protesto contra o resultado que colocara a favorita, Pra não dizer que não falei de flores, em segundo lugar.

Foi um acontecimento histórico. A canção de Vandré continha versos considerados subversivos e ofensivos às Forças Armadas. Por isso, recomendou-se ao júri que não a premiasse. Ao iniciar sua apresentação, Vandré ainda ouvia o protesto da plateia. Reagiu gritando: “Gente, a vida não se resume a festivais. Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque merecem todo o nosso respeito. Não pensem que me apoiam vaiando.” Logo depois, a multidão passou a cantar com ele, em uníssono.

Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o “Geraldo Vandré”, nunca mais seria o mesmo. Passou a ser perseguido pelo regime, que logo proibiria a execução e a venda da música, especialmente após a edição do AI-5, em dezembro de 1968. Naquele mesmo dia, 13 de dezembro, estava em Anápolis, enquanto o presidente Costa e Silva decretava o Ato Institucional que mergulhou o país em trevas e suprimiu as liberdades individuais.

Vandré tornou-se uma figura enigmática. Fala-se que seu afastamento da vida artística, o isolamento e até certo comportamento errático resultaram das torturas sofridas em interrogatórios. Não quis mais ser chamado de Vandré. Jair Rodrigues, intérprete de sua célebre Disparada, relatou que, ao chamá-lo assim, ouviu a resposta: “Eu sou Geraldo Pedrosa. Geraldo Vandré morreu em 1968.”

A maior surpresa viria anos depois. Ao retornar do exílio, em 1973, concedeu entrevista ao Jornal Nacional que intrigou a esquerda e seus admiradores. Elogiou a ditadura e negou ter sido torturado: “As Forças Armadas não têm nada contra mim. Nunca pertenci a partido político. Nunca fui constrangido a declarar nada.”

Inexplicavelmente, passou a adotar insígnias da Aeronáutica, chegou a se hospedar em hotéis da corporação e compôs Fabiana, em homenagem à FAB. Contudo, antes de ser atingido pela repressão, declarou ao Correio da Paraíba, em outubro de 1968:
“Cantarei ‘Caminhando’ até na cadeia, bastando ter um violão. Quando digo ‘nos quartéis lhes ensinam lições de morrer pela pátria e viver sem razões’, não pretendi atingir apenas o Exército, mas todas as instituições que isolam as pessoas da vida. Disse uma verdade. Até alguns militares concordam comigo. Por ela me responsabilizo.”

Naquela noite no Maracanãzinho, Vandré entrou para a história do Brasil. O triste é que o episódio trouxe a ele consequências devastadoras. Tornou-se um homem marcado pela dor, sempre à sombra do medo.

Continuemos cantando sua canção.
“Os amores na mente, as flores no chão. A certeza na frente, a história na mão. Caminhando e cantando e seguindo a canção/Aprendendo e ensinando uma nova lição.”

Rui Leitão

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo